"Antes que me esqueça"
José Carlos Fernandes
Soube que a artista plástica Claire Kessner-Bradner traça “mapas afetivos” com os endereços que marcaram sua vida. A proposta é muito simples: ela cata o guia das ruas de sua cidade, São Francisco, na Califórnia, e finca ali plaquinhas, nas quais explica, de próprio punho, o que lhe aconteceu nas alamedas x ou y. Nada de mais: as marcações variam do lugar em que teve um beijo roubado à calçada onde levou um tombo de skate. O efeito é instantâneo. Diante do mapa íntimo da artista outras pessoas se sentem estimuladas a fazer o mesmo. Pelo que se sabe, a brincadeira está gerando uma espécie de “movimento planetário em prol da cartografia sentimental”, o que é bem-vindo nesse momento em que as metrópoles estão cada vez mais parecidas a Gotham City.
Acho difícil encontrar um morador da zona urbana que não tenha sofrido algum atentado à memória. Um belo dia a gente passa e o armazém do seu Edevar ou a casa da dona Nerinha não estão mais lá. Pior que isso – não tarda e acabamos esquecendo como era a dita rua da nossa infância, onde transitávamos de Conga e sem os dentes da frente.Essa preocupação me assaltou pela primeira vez no dia exato em que minha rua ganhou uma mão de piche. Foi há um bom par de anos. E se agravou ao ler A terceira onda e O choque do futuro, ambos do jornalista Alvin Toffler. Ele tratava da arquitetura desmontável praticada nos Estados Unidos e da impossibilidade cada vez maior de alguém rever a escola ou uma praça da meninice. Tanto fascínio pelo novo tinha um preço – alertava.
Toffler é hoje um nome tão fora de moda quanto a touca bóbis. De futurista arrojado acabou relegado à categoria dos chatonildos avessos à alta tecnologia. Mas cá entre nós, ainda gosto do velho Alvin. Nele me escoro para sobreviver à fúria dos twitters que, em nome da velocidade, roubam nosso tempo.
Há quem julgue essa conversa uma ladainha de gagás. Ao provocá-la, costumo escutar que qualquer saudosismo não passa de tolice. Que “é relativo”, pois o “mapa afetivo” de quem agora está na flor dos 15 anos vai incluir prédios fumês e pracinhas do Batel divididas ao meio. É a regra: uma hora, todo mundo fica na saudade. O próprio Toffler entendeu que a nostalgia é um sentimento ralo demais para ditar as regras do mundo. Suspeito que por causa disso afirmou que as cidades só permanecem a pino num único ponto: nas nossas lembranças, esse vasto “museu imaginário”, conforme expressão cunhada por André Malraux.
Tenho para mim que essa prosa toda ajudou a desenvolver o conceito de “cidade imaginária”, um lugar empoeirado e impreciso, mas resistente à tirania das betoneiras e dos bate-estacas. Nas lembranças ainda é possível que as metrópoles sejam como ninhos. Como fala a filósofa Olgária Mattos, “uma rua é um lugar em que uma guerra eclodiu e onde um amor acabou”. É o que os mapas afetivos de Claire e sua turma estão nos forçando a lembrar.
Anos atrás, um membro da família Geronasso, do bairro Boa Vista, me contou da paixão proibida entre o agregado Jovino do Rosário – cujo nome batiza uma das vias rápidas da região – e Angelina, filha do patriarca Ludovico. A história tinha tal colorido que até hoje não passo por ali sem imaginar a bela montada num cavalo branco, como me foi descrito, trocando olhares furtivos com o pobre do amado. Merecia uma placa no sinaleiro: “Aqui Jovino roubou um beijo”. Seria inspirador, particularmente em dias de engarrafamento.
A memória, creio, pode ser um mecanismo mágico e subversivo. Fiz a experiência ontem: a Ana me perguntou há quanto tempo eu morava na redondeza. Respondi que desde a época em que a Rua Ângelo Sampaio tinha paralelepípedos. Rimos feito bobos. Sem querer, dei àquela mulher a chave dos segredos: ela sabe que habito, de fato, a um palmo do asfalto.
Um comentário:
amadoooooooooo que honra ter vc aqui...como sempre AHAzando em suas crônicas! AMO
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